domingo, 27 de fevereiro de 2011

O Moacyr se foi

Hoje, assim que voltei da caminhada, alonguei um pouco, tomei um banho, forrei o estômago e, depois, para a minha surpresa e pesar, a primeira coisa que vi ao ligar o micro foi que o Moacyr tinha morrido. Pois é, o Scliar. Aquele gaúcho de Porto Alegre, sanitarista de formação, que venceu quatro vezes o Jabuti (1988, 1993, 2000 e 2009) e que a uns quarenta dias (ou mais) estava no hospital tratando das consequências de um AVC. Aquele que nos deixou uma porção de livros imperdíveis como A Mulher que Escreveu a Bíblia, A Orelha de Van Gogh, O Centauro no Jardim. Aquele que tanto escreveu, fantasiou e, não raro, teve a tradição judaico-cristã como pano de fundo de suas histórias. Aquele que vai nos deixar saudade.

[ChuckWilsonDB]

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Foto: paraty.com.br Foto: Adriana Mariano Foto: Fal Vitiello de Azevedo

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Espírito Natalino

Moacyr Scliar (1937-2011)

“Homem disfarçado de Papai Noel
tenta matar publicitária em SP.”
(Caderno Cotidiano – FSP – 18/12/01)

Primeira coisa que ele fez, ao chegar em casa, foi tirar a roupa de Papai Noel: estava muito quente, suava em bicas. Também queixou-se de dor na coluna. Isso é por causa do saco que você carrega, observou a mulher. De fato pesava bastante, o tal saco. A razão ficou óbvia quando ele esvaziou o conteúdo sobre a mesa: revólveres, granadas, submetralhadoras, vários pentes de munição. Já não dá para sair de casa sem um arsenal resmungou. O seu mau humor era tão óbvio que ela tentou amenizá-lo, puxando conversa. Como foi o seu dia, perguntou.
— Um desastre foi a azeda resposta. — Mais uma vez errei a pontaria. Já é a segunda vez nesta semana.
— Isto é o cansaço -disse ela.
— Você precisa de um repouso. Amanhã você vai ficar em casa, não vai?
— De que jeito? Tenho trabalho.
— Amanhã? No dia de Natal?
— O que é que você quer? É a minha última chance de usar a fantasia de Papai Noel. Tenho de aproveitar.
Suspirou:
— Vida de pistoleiro de aluguel é assim mesmo, mulher. Natal, Ano Novo, essas coisas para nós não existem. Primeiro a obrigação. Depois a celebração.
Ela ficou pensando um instante. — Neste caso –disse-, vamos antecipar a nossa festinha de Natal. Vou lhe dar o seu presente.
Abriu um armário e de lá tirou um caprichado embrulho. Surpreso, o homem o abriu com mãos trêmulas. E aí o seu rosto se iluminou:
— Um colete à prova de balas! Exatamente o que eu queria! Como é que você adivinhou?
— Ora -disse ela, modesta-, afinal de contas eu conheço você há um bocado de tempo.
Ele examinava o colete, maravilhado. E aí notou que ele era todo enfeitado com minúsculos desenhos.
— O que é isto? perguntou intrigado.
Ela explicou: eram pequenas árvores de Natal e desenhos do Papai Noel, trabalho de uma habilidosa bordadeira nordestina:
— Para você lembrar de mim quando estiver trabalhando.
Ele começou a chorar baixinho. Em silêncio, ela o abraçou. Compreendia perfeitamente o que se passava com ele. Ninguém é imune ao espírito natalino.

Texto extraído do jornal “Folha de São Paulo”, São Paulo, edição de 24/12/2001, publicado com o título "Espírito natalino, 2001. Moacyr Scliar, às segundas-feiras, escreve um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal. Tudo sobre Moacyr Scliar e sua obra no Projeto Releituras. As fotos utilizadas neste post são, respectivamente, de Paraty Turismo e Ecologia, Adriana Mariano e Fal Vitiello de Azevedo.

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